Segundo: Sérgio Raimundo - Militar
Não te conheço, não sei como te chamas; se calhar Sófia, Marta, Berta, Ana ou Carla. Aliás, minto quando digo que não te conheço. Conheci-te hoje bem escondida na amarga lágrima que inundou os olhos quando te vi, ali, a arfar, totalmente estendida.
De certeza hoje foste despertada na cama por um alarme, levantaste-te da cama a correr, porque não querias ser atropelada pelo atraso; preparaste-te e saíste de casa. Se calhar tens filhos, se calhar atiraste aos teus filhos uns beijinhos despachados e foste à rua. Se calhar, querida moça.
Foste à rua para tentar gritar pelo país que todos os dias é atropelado pela nossa estupidez, foste à rua linda, sorridente, sem a mínima informação de que serias transformada em alcatrão por um blindado. O blindado passou por cima de ti como os autocarros passam, sem se importar, por sobre as feridas de cancro das nossas estradas.
Não te conheço, não te sei o nome. Se calhar és uma Sofia, uma Marta, uma Berta, uma Ana ou uma Carla. Mas, tu não precisas de nome neste momento. Quem precisa de nome é o polícia que abasteceu o blindado, fez manobras no comando para não passar por cima dos colegas, invadiu a cidade e passou por cima de ti. Ele precisa de um nome, querida: é um assassino.
Penso em ti, neste momento, com os meus olhos totalmente nublados, penso nas mãos tão cheias de amor que te carregaram como um pequeno embrulho de carne moído pelo blindado da polícia. Penso no meu país atropelado que atropela pessoas para pôr tudo em ordem.
Querida moça, penso em ti neste momento. Penso na tua bolsa branca que se agitava sem parar quando te evacuavam por braços com um lençol branco de amor. E a polícia ali: procurando mais um corpo para transformar em alcatrão.
Não sei o que tinhas na bolsa. Se calhar um estojo de maquilhagem para usar ao fim do dia, se calhar uma carteira com fotografias dos teus filhos, se calhar um pequeno calendário com a data do teu aniversário a vermelho, se calhar um telemóvel cheio de chamadas, porque toda a gente quer falar contigo, porque toda a gente não sabe se voltarás para casa ou não...